domingo, 4 de setembro de 2011

Polissemia dos termos: poder, cultura e narrativas... Uma reflexão


Janete Rosa da Fonseca¹

                               



RESUMO: O exercício do poder, ou seja, a expressão de influências entre pessoas, instituições e culturas de modo a determinar o rumo que tomam e as ações que promovem, constitui um fenômeno natural e inerente às interações que ocorrem em qualquer organização social. A escola não é exceção e é neste espaço que podemos muitas vezes perceber a proliferação de atitudes e discursos. A narrativa é um gênero do discurso que pode configurar-se em um instrumento desencadeador de relações assimétricas de poder que se expressam na construção da cultura escolar.

Palavras-chave: Poder-narrativa- cultura- escola




            Este trabalho propõe-se a realizar uma breve reflexão sobre as narrativas que circundam o espaço escolar e o que estas narrativas buscam construir ou desconstruir entre os sujeitos. Encontramos, em determinados momentos, um atravessamento de poder nos espaços escolares, momentos estes em que as narrativas constituem o espaço e o momento de sala de aula.

            Há alguns anos, a educação era um bem para poucos e mantinha privilégios de elite. Avançou-se muito, incluíram-se quase todos, mas as relações de poder existentes perpetuam-se através de questões subjetivas que denotam o atravessamento de situações. A escola é vista como espaço legitimador da cultura através das narrativas que constituem seu espaço.
           



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¹ Licenciada em Pedagogia, Mestre em Educação, aluna do Programa de pós-graduação em educação da UFRGS.



Dentro dessas narrativas podemos muitas vezes detectar o exercício de poder no momento em que não reconhecemos o outro e sua cultura, passando neste instante a desautorizá-lo assim como afirma Silveira²,

...dentro do ambiente escolar dedicado á escolarização, outros espaços se
                        abrem com freqüência às narrativas como é o caso dos conselhos de classe
onde narrativas particulares “constroem os alunos”, de certa forma de ma-
neira similar aos tribunais do júri (afinal narrativas pregressas sobre um a-
cusado podem apontar para o delineamento de uma personalidade doentia)
ou a mídia, onde de forma tão freqüente, pública e por vezes espetaculari-
zada se constroem personagens (p. 201,2005)


Muitas dessas narrativas dizem respeito às histórias que ocorrem nos espaços escolares, pode-se analisar de quantas formas se conta uma vida, vida essa que quando diz respeito a nossa história nos encanta e incita a contá- la, ouçamos as palavras de Arfuch³


La percepción del carácter configurativo de las narrativas, en especial
las autobiográficas y vivenciales, se articula, casi de modo implícito,al
carácter narrativo de la experiencia. La relación entre temporalidad   y
experiencia, crucial para la historia, remite tanto a un pasado que impone
su huella como a una anticipación hacia lo imprecedible.Doble momiento
que es también, recordemos, el que acompaña el trabajo- el intervalo de la identidad  narrativa ( p.92,2001)


Desta forma podemos perceber que existe uma certa recorrência de algumas temáticas que são culturalmente privilegiadas no espaço escolar e que, certamente, estas não dizem respeito a nossas histórias de vida, assim como não são bem vindas nossas histórias de sucesso ou fracasso. Ou seja, o que é contável desloca-se, transforma-se, varia conforme a situação e o local onde estamos.

A cultura é alimentada, criada, produzida, reforçada e por vezes subvertida pelas narrativas com protagonistas pontuais em circunstâncias e lugares datados, neste momento como nos fala Silveira, “algumas narrativas culturais foram explicitamente generalizadas, como o lastro comum da cultura ocidental, que como sabemos, é branca, européia, masculina, colonial,..”(p.199,2005).

E assim muitas vezes são construídas as relações de poder no espaço escolar, cujas narrativas tanto nas salas dos professores, quanto nos conselhos de classe fazem alusão aos alunos, como “o clarinho’, “o bonitinho”, considerando que o poder é uma rede de relacionamentos sempre existirão relações de poder em espaços onde a cultura produz sujeitos e determina sua conduta frente as mais diferentes situações. Existe uma idéia de normatização da conduta destes sujeitos a partir das narrativas que são tecidas sobre eles e sobre suas histórias de vida, histórias estas que acabam por legitimar sua conduta.

Não proponho nesse ensaio uma análise simplista de como as narrativas se constituem, mas baseando-me na proposta de Rosa Maria Hessel da Silveira, proponho uma reflexão de como estas narrativas podem favorecer algumas práticas escolares, assim como a  estabilidade de identidades e representações produzidas por essas praticas. Assim nos fala Silveira:


... os textos pertencentes ao ordenamento legal da educação, as teorias e
recomendações pedagógicas, as grandes palestras, os livros-texto de di-
vulgação das concepções pedagógicas, se esses discursos adotam por
princípio um formato textual de caráter mais generalizante, dissertativo,
expositivo, judicativo,etc, as práticas culturais cotidianas, nas casas, na 
rua, nos lugares de trabalho e  de lazer, nos clubes de futebol, na mídia
se valem é de pequenas narrativas, de     textos  particulares que narram
eventos, fazem protagonistas agirem em ambientes e tempos, apresentam
circunstancias, apontam causalidades ou contigüidades ( que ás vezes re-
sultam em causalidades). Quanto á mídia, basta relembrar as revistas de
fofocas, sempre com grande êxito de leituras, mas sem esquecer também
das revistas semanais, de informação, as histórias “exemplares” de quem
se fez sozinho, de quem “migrou e venceu” ou de quem “migrou” e fracassou
de quem “errou e se redimiu” ou de quem “errou e se afundou”, e assim por
diante.”(p.199,2005)”.

Todas estas formas de narrativas se estabelecem na Escola, em um espaço pedagógico em que muitas vezes precisamos aprender a lidar com determinadas situações, como a que nos apresenta Silveira, numa discussão sobre as narrativas que constituem o momento destinado à participação dos alunos em discussões que preconizam esta prática.


Como vemos o aluno, que sempre quer trazer sua contribuição ao tema, através de momentos narrativos que buscam contar algo sobre os pais, os avós, a sua casa, ou seu trabalho? Retomo as palavras de Silveira, quando nos fala que, “ talvez este aluno ainda não tenha sido eficientemente enquadrado, nas regras do discurso escolar, acadêmico e portanto não sabe que histórias particulares não interessam ? ou as vemos como marcas de uma cultura aldeã, paroquial, de vizinha de cerca, que faz fofocas do cotidiano e que não sabe se tornar cosmopolita, moderna, civilizada, enfim, convenientemente educada?” (p.200,2005).

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² SILVEIRA, Rosa Maria Hessel. Discurso, Escola e Cultura: Breve roteiro para pensar narrativas que circundam e constituem a Educação, p. 199-200, 2005.
³ ARFUCH, Leonor. El Espacio Biográfico. Dilemas de la Subjetividad contemporánea, p..92, 2001.

A autora nos mostra, com essas considerações, que estes alunos com suas contribuições estão contando uma segunda história, momento em que tentam exibir a compreensão dos fatos, porém correm o risco de não serem capazes de refletir de acordo com o intuito do professor, gerando assim um insucesso na busca da intersubjetividade.

Porém, nos relembra a autora, esta segunda história tão obviamente motivada pode não ser percebida com satisfação pelo professor conforme sua hierarquia de valores. Esta é mais uma possibilidade que se abre às narrativas na construção do espaço escolar dos sujeitos que os freqüentam.

As narrativas podem ainda ser apresentadas como instrumento de persuasão, como os trechos bíblicos, as histórias infantis, os depoimentos de sucesso, enfim o reforço da exemplaridade, através de narrativas que moldam condutas e forjam estereótipos. O de como devo agir para ser considerado bom ou mau, como devo me transformar para tornar-me o modelo ideal que o espaço que quero ocupar na sociedade exige.

Qual é o modelo de família perfeita? Podemos também encontrar resposta para essa indagação através das narrativas, que constituem imagens e representações do que é perfeito, belo e forte.


Além de vermos as narrativas como uma maneira de (des)construir os sujeitos e de reforçar e/ou perpetuar relações de poder no espaço pedagógico, Silveira, nos diz que “as narrativas também podem servir como testemunho da experiência vivida e essa narrativa da experiência como legitimadora de uma determinada identidade, de uma alegada competência”.(p.206,2005)


Ainda Silveira (2005), nos fala que no campo pedagógico, vale relembrar o quanto as narrativas e histórias das experiências valorizam, temperam e consagram determinadas imagens, a imagem de professor, de aluno, o “aluno inteligente’, aquele que nunca estudou, mas sempre se saiu bem, o que é ordeiro, disciplinado, que acumula pequenas vitórias, todos estes sujeitos tem suas atuações realimentadas pelas narrativas particulares correntes que perduram, se reforçam, se multiplicam e resistem até que outras narrativas contrárias as sobrepujem.


Para finalizar as reflexões contidas nesse ensaio, cabe ressaltar que as narrativas são muitas vezes a expressão de influência entre pessoas, instituições e culturas e que devemos evitar que o espaço escolar reproduza a sociedade em suas diferenças e desigualdades, deixando  de ser um espaço de construção do saber.


As narrativas que constituem o espaço escolar devem atentar aos significados que estão atrelados, para o sujeito que está ouvindo e para o que narra.

Para finalizar, reporto-me a Silveira (2005) que diz “que a escola está plena de histórias, construindo imagens de escola, imagens de aluno, imagens de conhecimento escolar, enfatizando contornos e esfumaçando outros, fixando personagens, apagando diferenças, pondo em relevo outras, riscando fronteiras, confinando  grupos... desenhando práticas  e delineando perfis.”


Assim sendo, ninguém é privado, havendo espaço para todos, já que todos são sujeitos construtores de uma cultura legitimadora de sua história.





   REFERÊNCIAS:



ARFUCH, Leonor. El espacio biográfico- dilemas de la subjetividad contemporanea.
Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica. 2001

_______.(org) Identidades, sujetos y subjetividades. Buenos Aires; Prometeo Libros,2002.

SILVEIRA, Rosa Maria Hessel.(org). Cultura, poder e educação; Editora da ULBRA, 2005.


    

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